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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Dívida pública e juros. Quem paga a conta? Entrevista com Maria Lucia Fattorelli

28.05.10 - Adital - Notícias da América Latina


IHU - Unisinos *

Adital - Em 2009, 36% de toda a receita brasileira foi utilizada só para pagamento dos juros de dívidas públicas, segundo Maria Lucia Fattorelli, que concedeu esta entrevista, por telefone, à IHU On-Line. Ela é coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, que deu suporte aos parlamentares durante a CPI da Dívida Pública, encerrada recentemente. Maria Lucia explicou como se constitui atualmente a dívida pública brasileira e desmistificou a informação que não temos mais dívida externa. "O FMI continua monitorando a economia brasileira, embora tenhamos pago a parte financeira que devíamos a eles. Mesmo assim, continuamos sócios do FMI",afirmou. 
                         

Maria Lucia Fattorelli é auditora fiscal da Receita Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul. É graduada em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Contábeis Machado Sobrinho, em Juiz de Fora. É especialista em Administração Tributária pela Fundação Getúlio Vargas e organizadora do livro "Auditoria da Dívida: Uma Questão de Soberania" (Rio de Janeiro: Contraponto, 2003)

Confira a entrevista.


IHU On-Line - No que se constitui a dívida pública brasileira?
Maria Lucia Fattorelli - Hoje, a dívida pública brasileira é dividida em duas partes: externa e interna. A dívida externa estava em 282 bilhões de dólares em dezembro de 2009. Já a dívida interna estava em mais de dois trilhões de reais no mesmo período. Se somarmos as duas dívidas, chegamos perto de três trilhões de reais. Esta dívida está consumindo a maior parte dos recursos da União. No último ano, os gastos com a dívida consumiram 380 bilhões de reais, que correspondeu a 36% de todo o orçamento da União, sendo disparado o maior gasto. Enquanto isso, foram destinados em recursos 4,8% para a saúde e, 2,8% para a educação. A dívida pública brasileira está muito elevada, consumindo uma grande quantidade de recursos e deixa toda a sociedade sacrificada.


Recentemente, o governo anunciou mais um corte de dez bilhões de reais para gastos públicos. Mas, enquanto isso, os juros estão subindo. É importante lembrarmos que a dívida pode ser um importante financiamento para o Estado, só que, no caso brasileiro e nas investigações da CPI, apuramos que ela é meramente de juros sobre juros. Desde o final da década de 1970, quando houve a alta unilateral das taxas internacionais, esta é uma dívida que cresce em função dos elevados juros. Muitas vezes, mesmo com muito sacrifício, não se chega a cumprir todo o pagamento dos juros, e uma parte deles vai se incorporando ao estoque.


IHU On-Line - Há algum tempo, Lula disse que não temos mais dívida externa. A dívida realmente acabou?
Maria Lucia Fattorelli - Isso nunca aconteceu. Ele fez uma comparação entre o estoque da dívida externa, os 282 bilhões de dólares, separando as partes públicas e privadas dessa dívida. Se analisarmos somente a parte da dívida pública, que é comparada com o estoque das reservas internacionais que o país vem acumulando nos últimos anos, já supera os 230 bilhões de dólares. Ocorre que essa comparação é totalmente esdrúxula, não tem cabimento. Primeiro, porque não se pode considerar só a dívida externa pública como se fosse um compromisso da nação, é preciso se somar, inclusive, a dívida externa privada.
Toda essa dívida tem o aval do Ministério da Fazenda, e é obrigação do país pagar esse débito. Não foram poucas as vezes que essa dívida privada se transformou em dívida pública. Desde a década de 1970, identificamos também diversos documentos que provam essas transformações de dívida privada em pública.
Temos que considerar como uma obrigação do país toda a dívida externa, não só a pública. Além disso, outras reservas não estão disponíveis. O Brasil tem empregado uma grande soma de recursos na acumulação de reservas, e ninguém sabe em que estão aplicadas essas reservas. A CPI fez um requerimento de informações para perguntar em que estão sendo aplicadas as reservas. O Banco Central respondeu com sigilo em um envelope lacrado que ninguém teve acesso. O que sabemos é que grande parte das reservas estão em títulos da dívida norte-americana. A outra parte, não sabemos onde está aplicada.


Além de tudo isso, o passivo do país com o exterior não é apenas a dívida. O país tem vários outros passivos, por isso não tem cabimento se comparar só a dívida externa privada com as reservas. Sob todos esses argumentos, não cabe dizer que a dívida externa acabou, até porque esse débito externo exige o pagamento de juros, e as reservas não estão rendendo quase nada para o país. Elas estão em aplicações que rendem pouco ou quase nada.


IHU On-Line - O que caracteriza a dívida externa brasileira?
Maria Lucia Fattorelli - Por definição, a dívida externa é em moeda estrangeira e é contraída junto ao exterior. A dívida interna é aquela contraída em reais e devida a residentes do país. Essa é uma definição clássica, mas hoje esses conceitos já não valem na realidade. O Brasil já fez várias emissões de título da dívida externa em reais que tiveram grande aceitação no Estado internacional. Isso porque o dólar estava em flagrante queda no mercado internacional, enquanto os títulos em reais garantiam a esses estrangeiros uma quantidade de dólares cada vez maior.


Esses conceitos clássicos hoje estão sob questão porque temos títulos da dívida externa em reais, e grande parte da dívida interna está nas mãos de estrangeiros que vêm ao país em busca de uma moeda que está se valorizando frente ao dólar. Na projeção dos últimos anos, o dólar teve uma queda muito grande, e a desvalorização cambial já significou um ganho para o estrangeiro.


Além disso, os títulos da dívida interna brasileira são os que pagam os maiores juros do mundo. Em meio à crise financeira mundial, o mundo inteiro está com preços baixíssimos, próximo de zero, e os juros no Brasil estão subindo inexplicavelmente. Fora isso, o estrangeiro que aplica em títulos da dívida ainda tem isenção tributária. Todo esse conjunto de coisas está transformando o Brasil no destino dos grandes especuladores internacionais que buscam alta rentabilidade, isenção tributária, e a total liberdade de capitais que temos aqui. Isso está influenciando muito nas contas públicas, está provocando um crescimento enorme da dívida e uma exigência de pagamentos de juros, pois, quanto maior é a dívida, maiores são os juros.


IHU On-Line - De onde vem os recursos para pagar esses juros?
Maria Lucia Fattorelli - Dos cortes de gastos sociais, de investimentos, da redução das possibilidades de reajuste. No meio disso, vimos, no Congresso, uma briga tremenda para um reajuste ínfimo para os aposentados, entre 7 e 7,7%. Enquanto isso, os juros subiram de 8% para 9,5%, e agora há uma proposta de subir para 11,5% no fim do ano.


Vemos uma total disparidade de tratamento entre a questão financeira da dívida, e a questão social, a respeito dos trabalhadores, da classe carente que precisa do serviço público de saúde e de educação. Vemos cada vez mais dificuldades em cumprir com esses direitos sociais, além do privilégio cada vez mais escandaloso para esse setor financeiro.


IHU On-Line - Qual é a presença do Fundo Monetário Internacional (FMI) no Brasil hoje?
Maria Lucia Fattorelli - O FMI continua tendo seu escritório, no Brasil, e ainda tem influência na definição em políticas, como a do superávit primário, de aumento de juros e de privatizações, porque estamos passando por isso. Tudo isso segue a cartilha do fundo monetário. O FMI continua monitorando a economia brasileira, embora tenhamos pago a parte financeira que devíamos a eles. Mesmo assim, continuamos sócios do FMI e, inclusive, agora, somos credores deles, o Brasil tem emprestado dinheiro ao fundo.


IHU On-Line - Quem são os credores da dívida interna?
Maria Lucia Fattorelli - Foi feito um requerimento de informações sobre isso, e foi respondido apenas em grandes blocos. Boa parte da dívida está na mão de estrangeiros, e mais de 50% está na mão de fundos, que são as instituições financeiras. Haja vista o lucro desses bancos, que não para de crescer, exatamente, em função dessa questão da contrapartida que eles têm com esses juros garantidos no processo de endividamento brasileiro.


IHU On-Line - Quais os encargos mensais que o Brasil tem que dispensar em função da dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli - Os dados não são divulgados tão rapidamente, temos somente os dados anuais. No ano passado, foram 380 bilhões. Fazendo uma conta rápida, dividindo pelos doze meses, temos uma média de 32 bilhões por mês, mais de um bilhão por dia de juros.


IHU On-Line - Quanto isso compromete a receita brasileira?
Maria Lucia Fattorelli - No último ano, foram 36% de todo o orçamento da União, basicamente, só para pagamento dos juros. É como se reservássemos 36% de nosso salário só para dívidas. Por isso, defendemos a auditoria dessa dívida, para separar o que realmente devemos, qual a parte desta dívida que pode ser questionada neste processo de juro sobre juro, uma figura proibida. Juro sobre juro caracteriza anatocismo, que já foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal e considerado ilegal. Temos que rever essa questão e fazer uma auditoria completa, rever o que pode ser questionado e trazer esse pagamento e comprometimento de juros somente para a parcela realmente devida em um patamar que pare de sacrificar tanto a sociedade brasileira.


O país precisa ter investimentos. Vejamos o que está acontecendo na energia, os apagões por todo o Brasil. Vejamos o que está acontecendo em termos de saúde e educação pública. O que será desse país daqui a 30 anos com esse sucateamento da educação? Uma professora de escola pública tem um salário ínfimo. Que país estão construindo para o futuro? Enquanto isso, estamos pagando juros escorchantes sobre uma dívida altamente questionável.


IHU On-Line - Qual a relação da dívida pública com o superávit primário?
Maria Lucia Fattorelli - O superávit é uma "economia" que se faz para reservar uma parte dos recursos que servem de garantia para o pagamento de juros. Dizemos "economia", pois ela é feita, por exemplo, por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU). Esta é uma lei aprovada pelo Congresso que garante que seja retirado até 20% do orçamento da seguridade social - saúde, previdência e assistência -, por exemplo, para cumprir a meta de superávit primário. Assim, várias outras rubricas sofrem contingenciamentos. Deste modo é que acontece essa "economia", tirando recursos das outras áreas e reservando para servir de garantia para o pagamento de juros.


IHU On-Line - A Rede Jubileu Sul tem uma grande luta que é a auditoria da dívida. Por onde tem avançado essa luta?
Maria Lucia Fattorelli - Temos atuado, principalmente, na CPI da dívida, que acabou de ser encerrada no Congresso. Toda a equipe da Auditoria Cidadã da Dívida se voltou para o trabalho da CPI. Conseguimos realizar análises técnicas para assessorar a CPI, que foi incorporada no voto separado, que, inclusive, já foi entregue ao Ministério Público para a continuidade das investigações. Antes disso, toda a equipe da Auditoria Cidadã da Dívida estava voltada à Auditoria Oficial do Equador.


Fui convocada para ajudar no relatório da auditoria, que ajudou o Equador a reduzir em 70% sua dívida externa. Continuamos sempre realizando eventos, produzindo publicações, mobilizando as sociedades, porque, infelizmente, são poucas mídias que concedem tempo para entrevistas sobre este tema.


Normalmente, a grande mídia bloqueia esse tipo de assunto, pois é financiada pelo mercado e por grandes bancos, que não querem ter esse assunto discutido já que são os que mais ganham com este processo.
Com esse bloqueio, só mesmo o Movimento Cidadão para levar esse debate para a sociedade. Temos nosso site (http://www.divida-auditoriacidada.org.br/) e também uma mobilização internacional, a Jubileu Américas e a Jubileu Global. Devemos nos interessar mais por esta questão, não há nada de complicado na dívida pública. É um tema que deve ser motivo de preocupação para todo o cidadão, pois a dívida está afetando a vida de cada um diariamente. O objetivo maior de nosso movimento é popularizar esta discussão em respeito a esse cidadão que está efetivamente pagando a conta.


Deputados Paulo Rubem Santiago (PDT/PE), Ivan Valente (PSOL/SP) e Hugo Leal (PSC/RJ) entregam o Voto em Separado para o Sub-Procurador Eugênio Aragão.










IHU On-Line - A CPI da dívida pública foi encerrada no Congresso. E agora?
Maria Lucia Fattorelli - A CPI foi encerrada. No relatório do relator, apesar de ter reconhecido a existência de vários problemas em relação à dívida, não foram apontadas recomendações fundamentais, como a de realizar auditoria efetiva da dívida e de aprofundar as investigações sobre os vários indícios de ilegalidade e ilegitimidades que foram apuradas. O relator deixa tudo isso no ar.


Em função disso, o deputado Ivan Valente, autor da CPI, fez um voto separado. Este voto recebeu assinatura de mais sete deputados e incorporou todas as análises técnicas que havíamos feito, cerca de mil páginas de análises sobre a dívida externa, interna, dos Estados e dos municípios. Este voto do Valente foi entregue ao MPF para a continuidade das investigações. A CPI encerrou. O outro passo será acompanhar o aprofundamento das investigações.

* Instituto Humanitas Unisinos